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A Metamorfose da Esquerda e a Sombra da Censura

Por Eduardo Becker 25 de maio de 2025 5 min de leitura
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A trajetória histórica da esquerda política, marcada em seus primórdios por uma vigorosa defesa das liberdades e uma intransigente oposição a qualquer forma de censura, parece apresentar, em tempos recentes, uma desconcertante inflexão. Observa-se, com crescente apreensão, uma inclinação de certos setores progressistas por mecanismos de controle discursivo, uma postura que contrasta agudamente com seu legado libertário. Este ensaio propõe-se a examinar as manifestações e possíveis raízes dessa aparente metamorfose, com particular atenção ao contexto brasileiro, onde iniciativas legislativas e judiciais têm acendido o debate sobre os limites da liberdade de expressão.

É inegável que a gênese dos movimentos de esquerda esteve intrinsecamente ligada à luta pela livre manifestação do pensamento, considerada ferramenta indispensável para a crítica social, a denúncia de opressões e a construção de alternativas políticas. No Brasil, a resistência ao regime autoritário de 1964-1985 forjou uma consciência coletiva sobre os perigos da mordaça estatal, com a esquerda posicionando-se como uma das principais vozes pela restauração plena das liberdades civis. A Constituição de 1988, nesse sentido, foi um marco, consagrando a liberdade de expressão como um direito fundamental, imune, em tese, a restrições arbitrárias.

Contudo, o advento da era digital, com a proliferação das redes sociais e a consequente amplificação exponencial do alcance discursivo – tanto para o bem quanto para o mal –, parece ter instilado em alguns segmentos da esquerda uma nova percepção sobre a necessidade de regulação. A preocupação com a disseminação de desinformação, discursos de ódio e narrativas que atentariam contra grupos vulneráveis ou a própria estabilidade democrática passou a figurar como justificativa para intervenções que, na prática, tangenciam ou resvalam perigosamente na censura.

Um exemplo notório dessa tendência é o Projeto de Lei nº 2630/2020, conhecido por seus críticos como “PL da Censura”. Seus defensores argumentam pela necessidade de responsabilizar as grandes plataformas digitais e combater a desinformação e o discurso de ódio. Todavia, a vagueza conceitual de termos como “desinformação” e a proposta de criação de uma entidade com poderes para fiscalizar e potencialmente remover conteúdos online levantam sérias objeções. O risco de que tal aparato seja instrumentalizado para silenciar opiniões divergentes ou críticas ao poder estabelecido, independentemente de sua orientação ideológica, é uma preocupação legítima e que ecoa os temores de um passado autoritário que se acreditava superado. A subjetividade inerente à definição do que constitui “desinformação” ou “discurso de ódio” pode facilmente converter-se em ferramenta de perseguição a opositores.

De forma ainda mais emblemática, a tentativa do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) de solicitar ao Ministério da Justiça o bloqueio da plataforma Discord no Brasil, sob o pretexto de coibir a disseminação de conteúdo de ódio e crimes contra crianças, revela uma abordagem tecnicamente falha e desproporcional. Embora as motivações declaradas sejam meritórias – a proteção infantil e o combate a discursos nocivos são imperativos sociais –, a solução proposta é profundamente problemática. O bloqueio integral de uma vasta plataforma de comunicação, utilizada por milhões de cidadãos para fins lícitos e variados, como forma de punir ou prevenir as ações de uma minoria criminosa, assemelha-se a uma interdição generalizada e indiscriminada. Tal medida, além de sua questionável eficácia (pois os perpetradores de crimes tendem a migrar para outras plataformas ou utilizar subterfúgios tecnológicos), estabelece um precedente perigoso de controle estatal sobre os meios de comunicação, ignorando soluções mais focadas e eficazes, como a investigação e punição individual dos responsáveis, em cooperação com as próprias plataformas, e o investimento em literacia digital.

Essa inclinação intervencionista, que parece priorizar o controle em detrimento da liberdade sob o manto da proteção, suscita um questionamento fundamental: quem detém a legitimidade para definir os limites do discurso aceitável? A história adverte que a concessão de tal poder ao Estado, por mais bem-intencionadas que sejam as justificativas iniciais, frequentemente resulta em abusos e na supressão do dissenso. A ideia de que um órgão centralizado possa atuar como árbitro da verdade ou da moralidade pública é incompatível com os princípios de uma sociedade aberta e plural.

É crucial distinguir a necessária responsabilização por atos ilícitos cometidos no ambiente digital – como calúnia, difamação, incitação à violência ou exploração sexual – da imposição de um controle prévio ou de um patrulhamento ideológico sobre o que pode ou não ser dito. O combate aos excessos e crimes na internet deve se dar através do aprimoramento dos mecanismos legais existentes e da cooperação internacional, e não pela via da restrição generalizada ou da criação de estruturas que possam, elas mesmas, converter-se em instrumentos de censura.

Em suma, a esquerda brasileira, ao confrontar os complexos desafios da era digital, parece hesitar entre seu legado histórico de defesa da liberdade e uma nova tentação pelo controle discursivo. A busca por um ambiente online mais seguro e ético é um objetivo louvável, mas os meios empregados para tal fim não podem, sob risco de contradição fundamental, minar as próprias liberdades que se pretende proteger. A vigilância constante da sociedade civil e a defesa intransigente da liberdade de expressão, mesmo para as ideias que nos parecem equivocadas ou ofensivas, são o antídoto mais eficaz contra o ressurgimento de práticas autoritárias, venham elas de que espectro político vierem. O desafio reside em encontrar caminhos que promovam a responsabilidade sem sacrificar a liberdade, pilar essencial de qualquer ordem social que aspire à justiça e ao progresso.

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