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The Fragile: Uma vasta experiência sonora

Por Eduardo Becker 21 de maio de 2025 25 min de leitura

Detalhes do Álbum

Artista: Nine Inch Nails

Álbum: The Fragile (1999)

Avaliação: (4.0/5)
The Fragile

Quiçá o nome Nine Inch Nails ou a figura de Trent Reznor não lhe sejam imediatamente familiares. Contudo, seja o leitor um cinéfilo dedicado ou um gamer ávido, é quase certo que já teve contacto com o seu prolífico trabalho.

Trent Reznor figura, inegavelmente, entre os compositores mais influentes do século XXI, com uma obra que se estende por múltiplas áreas. Um dos poucos músicos a serem laureados com um Oscar por suas contribuições cinematográficas, Reznor é reconhecido como um dos talentos mais proeminentes da nossa geração.

Recorda-se do jogo Quake? Sua trilha sonora foi concebida por Trent. E de Call Of Duty: Black Ops 2? A memorável música tema do jogo é de sua autoria, em colaboração com Jack Wall. Já assistiu a A Rede Social, o filme que desvendou os bastidores do Facebook para o grande público? Reznor compôs a trilha sonora em parceria com seu colaborador de longa data, Atticus Ross, trabalho pelo qual foram agraciados com o Oscar.

Hoje, debruçar-nos-emos sobre uma de suas obras mais ricas e artisticamente ambiciosas: The Fragile.

The Fragile é um álbum que, à primeira vista, poderia ter sido obscurecido pela maré pop e nu-metal do final da década de 1990 e início dos anos 2000. No entanto, destacou-se como uma das raras exceções de um álbum altamente experimental a alcançar sucesso estrondoso e aclamação crítica.

Qual adolescente edgy, que cresceu no limiar do novo milênio, não ostentou um poster do NIN na parede, talvez ao lado de um do KoRn?

Este álbum desafia as convenções do mainstream, buscando uma sonoridade o mais avessa possível ao comercial, embora, ironicamente (e, para Reznor, talvez tragicamente), tenha se tornado um inegável sucesso popular.

“Não foi idealizado com o propósito de ser um disco radiofónico, nem tampouco um álbum de cariz comercial. Era aquilo que eu necessitava imperiosamente fazer.” — Declarou Trent Reznor, em entrevista ao site Pitchfork.

“Em retrospectiva, julguei estar a criar algo que o público haveria de compreender… e, quando tal não se verificou, isso, em certa medida, despedaçou-me o coração.” — Confessou Reznor, em entrevista à Alternative Press em 2005.

Poster do NIN na série Os Sopranos Poster do NIN na influente série “Os Sopranos”, um marco cultural dos anos 2000.

Camisa do NIN em Os Sopranos O personagem A.J. Soprano vestindo uma camisa do NIN na série “Os Sopranos”.

Neste artigo, analisaremos a rica e complexa tessitura musical construída por Nine Inch Nails num dos seus álbuns mais experimentais e artisticamente relevantes.

Análise Trilha por Trilha

Disco 1: Esquerda

O lado esquerdo do álbum inicia-se de forma impactante com a faixa Somewhat Damaged.

Esta trilha introduz o ouvinte à tessitura sonora do álbum. A canção articula-se em torno de seu conciso riff de guitarra de quatro notas, sendo a sua primeira metade composta em compasso de 9/4 (ou um 3/4 recorrente). Inicia-se com um violão a executar o referido riff, ao qual se imiscuem, gradualmente, camadas de sonoridades abstratas. A bateria faz sua entrada, ao passo que outros violões se sobrepõem, reverberando a guitarra primária. Após as duas estrofes iniciais, sucede-se um breve interlúdio, durante o qual os violões cedem lugar a guitarras de pujante distorção. A potência gutural de Reznor é então ostentada, com a maioria dos versos sendo agora urrados. O terço final da canção é escrito em 4/4 (ou um compasso de 4/4 sobreposto a um de 3/4), enquanto a letra é entoada numa métrica rítmica dissonante. Estes versos derradeiros, de peculiar estruturação, são vocalizados sobre a cacofonia instrumental, a qual, por sua vez, rapidamente abre espaço para um sintetizador em crescendo no refrão, que amostra a voz de Trent Reznor.

The Frail

The Frail sucede à percussiva e agressiva “Somewhat Damaged”, e figura entre as canções de Nine Inch Nails de estrutura mais singular. Musicalmente, opõe-se a “Somewhat Damaged” em quase todos os aspectos: carece do emprego de qualquer forma convencional de percussão e inicia-se com drones que emergem gradualmente durante o desfecho de “Somewhat Damaged”. Estes, por sua vez, cedem lugar a guitarras e baixo de sonoridade potente e distorcida, executando uma progressão simples de cinco acordes. À medida que esta se repete, uma melodia de sintetizador sobrepõe-se, ascendendo em intensidade e altura, até que se extingue, juntamente com as guitarras. O baixo prossegue com a progressão sobre os drones, enquanto Reznor entoa o verso da canção, acompanhado, na segunda metade, por uma harmonia distante. A canção destaca, nesta secção, o uso de um ukulele – outra primazia para os NIN –, sendo o ukulele, isoladamente, o instrumento que dedilha uma ponte do final do verso para a secção conclusiva, caracterizada pelo retorno da guitarra e do baixo em sonoridade veemente, executando uma nova progressão, aos quais se somam vocais em grupo entoando uma melodia sem palavras. Toda esta conjuntura cede lugar, ao final da frase musical, a um som percussivo tênue que encerra a canção, o qual se repete enquanto se esvai nas camadas sonoras introdutórias da faixa seguinte, “The Wretched”.

The Wretched

The Wretched caracteriza-se por um singelo loop de bateria eletrônica e uma melodia de piano em oitava grave, sustentada por profundos sintetizadores atmosféricos. Os versos exibem Trent Reznor a proferir os vocais de forma incisiva, aos quais se junta, em breve, uma melodia de guitarra distorcida. O verso repetido avoluma-se até o refrão, onde um novo e célere riff ascendente de guitarra e um patch e loop de bateria distintos acompanham os vocais bradados. Novos loops atmosféricos conjugam-se à reentrada dos motivos do verso, que conduzem a uma repetição do refrão. A ponte da canção consiste numa alternância de riffs de guitarra distorcida sobre o patch de bateria e a ambiência do verso, os quais cedem lugar a uma melodia concisa. O refrão retorna em breve, sobreposto por um solo de guitarra com efeito wah, propiciando o regresso dos vocais do refrão, desta feita com Reznor a interpelar entre as repetições de “now, you know/this is what it feels like”. Após a derradeira repetição, as ambiências e o loop de bateria do verso reaparecem para um desenlace em esmaecimento e o retorno da melodia da ponte.

We’re In This Together

We’re In This Together desboca-se do desfecho de “The Wretched” com uma colagem sonora rítmica e maquinal. Esta ganha corpo e intensidade, mas cessa para introduzir o principal esteio rítmico da canção: um riff de guitarra distorcido e em staccato que perpassa todos os versos. Com a entrada da bateria e da guitarra com efeito wah, Reznor inicia a proferir o primeiro verso de forma ríspida. O refrão é comandado por guitarras de sonoridade potente, distorcida e contínua, e por bateria acústica, que acompanham os brados mais melódicos e agudos de Reznor. Após um segundo verso e refrão, uma ponte vigorosa, que ostenta um solo de guitarra com wah e densas e fluentes camadas de guitarra, conduz a um refrão final. Um riff de guitarra descendente, oriundo deste refrão, estende-se pela coda abrandada da canção, secção esta que partilha o motivo de três notas empregado em “The Great Below” e o motivo pianístico de “La Mer”. Esta, por fim, cede lugar à linha de guitarra com e-bow que inaugura “The Fragile”.

Curiosamente, a bateria ostenta uma afinação invulgarmente aguda. Segundo o produtor Alan Moulder, ele inicialmente conjeturou que a canção não prosperaria, porquanto constituía, à época, apenas o gérmen de uma ideia. Em virtude disso, Moulder conferiu à bateria essa sonoridade aguda em jeito de gracejo.

Reznor comentou sobre a faixa:

“Quando compus essa canção, foi uma das últimas destinadas ao álbum. A sua obviedade agradava-me, mas essa mesma obviedade me atemorizava, tratando-se de um álbum que reputo bastante denso e de assimilação algo árdua; não desejava uma canção que se destacasse de forma demasiado óbvia como o single de sucesso. De todas as faixas daquele álbum, creio que essa foi a mais difícil de conceber o arranjo e a mixagem, pois, se esta última fosse deficiente, a canção soaria excessivamente óbvia no contexto da obra - e, naquele ponto, estávamos perfeitamente cientes desse contexto geral. Assim, o aprendizado que extraí daquele processo criativo foi que a faixa vocal que eu de pronto teria descartado, por estar desafinada e minha voz falhar, era justamente aquela que deveria ser utilizada. Isto porque lhe imprimia um desespero que fazia com que toda a ambiência da canção se mostrasse correta.”

The Fragile

The Fragile, que empresta seu título ao álbum, desponta com um distante drone de guitarra com e-bow, oriundo do desfecho de “We’re In This Together”. O primeiro verso não tarda a surgir, caracterizado por bateria acústica que emprega um surdo com um pandeiro sobreposto, uma linha de baixo singela e a voz suave de Trent Reznor. O primeiro refrão apresenta tão somente o novo riff de baixo e o ritmo da bateria, acompanhados por camadas de sintetizador sequenciadas subjacentes às repetições de Reznor da frase “I won’t let you fall apart”. No segundo verso, o riff de baixo e o padrão rítmico da bateria retornam, com novos loops de percussão subjacentes, cedendo lugar em breve às guitarras de sonoridade potente e aos vocais bradados do segundo refrão. Todos estes elementos cessam ao final da frase musical, interrompidos por uma melodia de sintetizador em staccato que anuncia a entrada de camadas de cordas, Mellotron e percussão desafinada, sob a voz suave e desesperada de Reznor. Esta ponte prossegue enquanto Reznor repete “and picking”, esvaindo-se suavemente, ao passo que guitarras distorcidas propiciam o retorno da progressão do refrão e da bateria, sob um solo de guitarra que executa a mesma melodia da progressão de piano em “The Frail”. Isto conduz a uma derradeira repetição do refrão, com todos os instrumentos e vocais cessando abruptamente ao final da frase musical e desembocando em “Just Like You Imagined”.

Just Like You Imagined

Just Like You Imagined principia com uma ambiência tênue e sintetizadores, estabelecendo o palco para uma introdução de piano e guitarra. O corpo central da peça, de cunho energético, ostenta três secções distintas de cariz predominantemente melódico, demarcadas por breves pausas, uma das quais apresenta camadas de sintetizadores que emulam a voz de Trent Reznor. A derradeira secção retoma a quietude da introdução, porém com piano e baixo a executarem uma das linhas de baixo em uníssono. Estes se esvaem em volume, dando lugar a um loop de percussão tênue e distorcido, que encerra a canção.

Even Deeper

Even Deeper inicia de forma paulatina com camadas de percussão e sintetizadores de tonalidade grave. A voz de Reznor surge inicialmente de modo comedido, desembocando, por fim, num urro para o refrão de maior pujança e predominantemente guitarrístico. Cada uma das três secções distintas da canção é pontuada por interlúdios atmosféricos e de sonoridade tênue, numa abordagem análoga à empregada em “Reptile” (do álbum The Downward Spiral). As secções da ponte e da coda, de cariz marcadamente instrumental, revestem-se de uma densa atmosfera, com a presença marcante do violino.

Pilgrimage

Pilgrimage, com seu riff de guitarra de natureza abrasiva, emerge gradualmente do desfecho de “Even Deeper”, ao qual se somam, a cada repetição, novas camadas de sintetizadores de timbre mecânico e estratos percussivos. Estes estratos são prontamente subsumidos pelo tema principal, executado em sintetizadores. Após sua repetição, as camadas se interrompem, restringindo-se a uma guitarra distorcida a executar o mesmo riff, à qual se agregam, então, bateria, sintetizador de baixo e melodias vocais sem palavras. Estas camadas logo se entrecruzam em crossfade com o retorno da melodia principal, executada, desta feita, por instrumentos de sopro de metal, acompanhada por tambores marciais que emergem gradualmente. Por fim, as camadas de sopros e de sintetizadores cessam, restando apenas os tambores marciais a se repetirem e a cessarem abruptamente, desembocando no pad ambiental inaugural de “No, You Don’t”.

No, You Don’t

No, You Don’t principia com um pad ambiental de cariz subversivo, que emerge gradualmente do desfecho de “Pilgrimage”, o qual ganha corpo e arrasta consigo o loop de bateria; esta introdução veio posteriormente a ser lançada na íntegra sob o título ‘Feeders’. Decorridos 16 compassos, inicia-se o primeiro verso, bradado por Reznor e acompanhado por guitarras de sonoridade densa e distorcida. Estas permanecem patentes ao longo de grande parte da faixa, com o loop de bateria inicial a acompanhar os versos, transmutando-se, em seguida, num ritmo mais célere, com uma pulsação febril de pandeiro a executar semicolcheias. Uma ponte, que ostenta uma guitarra solo de timbre fuzzy, interrompe estes padrões, dissipando parte da energia, antes que o ritmo acelerado retorne e se avolume até um clímax ruidoso e abrupto. É certamente uma das trilhas mais agressivas do álbum, com claras influências do Metal Industrial.

La Mer

Pode-se sustentar que La Mer é profundamente influenciada pela obra homônima de Claude Debussy. Ambas as canções se desenvolvem para criar uma atmosfera sonora, e ambas possuem (evidentemente) o mesmo título.

Ao ser indagado sobre quaisquer compositores clássicos que o tenham inspirado, Reznor declarou num chat do Yahoo! em dezembro de 1999, mencionando Debussy:

“Eu estava em Big Sur, a perder o juízo. O seu contributo residiu no facto de que é mister ser regrado, com o que quer que se decida fazer. Quando lá me encontrava, Debussy e eu tivemos uma fusão mental por um instante. Senti-me compelido a plagiar o título, ‘La Mer’. Ele revolucionou o mundo rançoso à Mozart, onde tudo era rígido e estabilizado.”

Principia com acordes de piano acompanhados por contrabaixo acústico, sendo em seguida acentuada por bateria a executar um ritmo de jazz e guitarra com e-bow. Esta é uma das poucas canções de Nine Inch Nails executada com instrumentos quase integralmente acústicos. Consiste num compasso de 3/4 sobreposto a um compasso de 4/4. O seu tema pianístico é igualmente empregado no desfecho de “We’re in This Together”.

The Great Below

The Great Below inicia-se com uma camada singular de sintetizador que emerge gradualmente do desfecho de “La Mer”, ascendendo em altura, até que a ela se conjugue uma melodia de baixo de tonalidade grave, duplicada por sintetizadores e a prover acompanhamento a uma melodia de violão. Estes sintetizadores e a linha de baixo cessam para os vocais suavemente entoados de Trent Reznor, ainda acompanhados pela melodia de guitarra, e aos quais se agregam novos loops atmosféricos de feição marítima. O verso, “all of this for you”, enseja a reentrada da linha de baixo sintetizada e das camadas atmosféricas, as quais se avolumam à medida que o segundo verso é entoado com harmonia. Estas, por fim, culminam no clímax, que ostenta uma linha de baixo vigorosa e camadas de melodias vocais sem palavras, partilhadas com “And All That Could Have Been” (da faixa homônima do álbum ao vivo), e os versos bradados por Reznor, os quais conectam o clímax à secção da coda. Principiando com uma nova melodia de guitarra, camadas atmosféricas imiscuem-se ciclicamente, enquanto um padrão rítmico de bateria faz sua entrada e Reznor entoa os versos derradeiros. O verso “I can still feel you”, e sua melodia, são referenciados ulteriormente em “Underneath It All”. A bateria, por fim, cede lugar à repetição em esmaecimento dos loops atmosféricos. Esta trilha finaliza o lado esquerdo do álbum com notável expressividade.

Disco 2: Direita

O lado direito do álbum inicia-se com a canção The Way Out Is Through.

Numa entrevista à VIVA 2 Magazine, Reznor desvelou a origem do título da canção:

“A forma como eu não conseguia lidar com [o falecimento da minha avó] era não abordando o assunto ou não tendo a coragem de escrever o que quer que fosse. E foi preciso essa constatação para reverter a situação e, ao escrever sobre isso e ao expressá-lo, senti-me melhor a esse respeito, senti que conseguia superá-lo. A saída é através [do problema]. Foi daí que surgiu o título da canção, porque eu pensava que a saída era contornar a questão e caminhar pela beira.”

Seu título provisório, conforme revelado por uma fotografia da sua folha de gravação no site oficial da banda, era “Anomaly”. Existe uma teoria correlata entre os fãs de que ambos os nomes constituem uma referência ao videojogo Doom de 1993 – o nível “E1M8: Phobos Anomaly”. Ao superar esse nível, o jogador depara-se com um ecrã de texto que inclui a frase “Looks like you’re stuck on the shores of Hell. The only way out is through.”

A 15 de outubro de 2010, o produtor Alan Moulder, nos PSW Recording Forums, explicou a introdução filtrada:

“A filtragem foi realizada de duas maneiras. A música passou pelos filtros de um sintetizador Virus, programado via MIDI. Utilizámos bastante esse tratamento no álbum. Os vocais/sussurros que surgem no início foram obtidos enviando-os para um pequeno altifalante Auratone com um cabo extenso, e o assistente segurava-o e caminhava por um longo corredor até uma grande garagem, onde um microfone U87 se encontrava no final. Ele começou no fundo do corredor e caminhou diretamente até o microfone. A ideia era que soasse como se viesse de longe e se aproximasse. Eu estava entediado e pensei que seria divertido fazê-lo; foram precisas algumas tentativas para acertar o timing.”

A canção principia de forma tênue em 6/8, com percussão e camadas de sons ambientais, e Reznor a sussurrar repetidamente os dois primeiros versos. Isto cede lugar à construção do crescendo, à medida que nova bateria faz sua entrada e sintetizadores executam uma das melodias proeminentes da canção, tudo equalizado de modo a soar como se estivesse submerso. A programação da bateria aqui é assaz similar, em padrão, à de “The Becoming”. A melodia entrecruza-se em crossfade com outra, esta executada na guitarra, e a tonalidade da canção se altera, tornando-se mais sombria à medida que a canção gradualmente se avoluma até o seu clímax: um ritmo singelo, comandado pela bateria, acompanhado por guitarras distorcidas e sintetizadores. Reznor entra para bradar o refrão, encerrando o clímax da canção. Segue-se um desenlace que apresenta a mesma melodia anterior ao refrão e os sussurros de Reznor, desta feita com improvisação cromática de piano sobreposta. O final da canção transita suavemente para “Into The Void”.

Into The Void

A canção inicia-se numa construção magistral de camadas de percussão e melodia, qual ourives a burilar uma joia, antes de nos arrebatar para o seu corpo principal! E que corpo! Um loop rítmico irresistivelmente dançante e uma linha de baixo sintetizada que pulsa com vida própria. A introdução é um verdadeiro banquete sonoro, com a delicadeza do bandolim, a profundidade do contrabaixo, a alma do violoncelo e o toque exótico da marimba. Os vocais sobrepostos de Trent Reznor são a assinatura desta obra, entrelaçando-se nos refrões etéreos e sem palavras, onde são magnificamente acompanhados por guitarras em sustentação, a tecer uma tapeçaria ruidosa e descendente de pura genialidade. Este riff, diga-se de passagem, evoca com maestria a grandiosidade que encontramos no ápice de ‘The Mark Has Been Made’. E a ponte instrumental? Um golpe de mestre! Cessa de forma abrupta, deixando-nos em suspenso, apenas para reemergir triunfante, pouco depois, com um solo de sintetizador estridente que rasga os céus! A melodia ascendente do sintetizador durante esta ponte é de uma semelhança notável, quase um piscar de olhos cúmplice, àquela que nos encanta no terço final da versão demo de ‘Kinda I Want To’. Um refrão final, extenso e catártico, encerra esta jornada épica, culminando numa muralha de som – marca registrada de Nine Inch Nails – que envolve o verso icônico como um abraço sônico. E este verso, meus amigos, é o derradeiro suspiro da canção, entoado a cappella, deixando-nos em reverente silêncio. Esta trilha, sem a menor sombra de dúvida, figura gloriosamente entre as minhas três prediletas do álbum.”.

Where Is Everybody?

Esta faixa irrompe com uma energia contagiante, principando de imediato com uma batida de bateria que é pura pulsação visceral e uma linha de baixo distorcida, soberbamente duplicada por sintetizadores! Trent Reznor, então, adentra a cena, proferindo o primeiro verso numa torrente célere, mas incrivelmente melódica. Os versos são adornados por um lick de guitarra absolutamente cativante, com uma inflexão funky e bends que lhe conferem uma alma única – provavelmente extraído com maestria da configuração piezoelétrica de uma Parker Fly. O refrão é uma explosão sonora, ostentando um riff de guitarra poderoso e alterações rítmicas nas faixas vocais que se sobrepõem numa harmonia complexa e arrebatadora. E quando pensamos que já vimos tudo, após o segundo refrão, uma verdadeira muralha de guitarras avança sobre nós, magnificamente sustentada por ainda mais sintetizadores! Estes, num clímax de pura arte sônica, cedem o palco aos solos de guitarra invertida de Adrian Belew – um toque de gênio! Este desfecho apoteótico entrecruza-se em crossfade com uma coda instrumental breve, porém de uma beleza tênue, sombria e distantemente melancólica, que nos conduz, como num sonho, para ‘The Mark Has Been Made’. E que deleite notar como esta trilha incorpora, com uma audácia admirável, claros elementos de Rap em seu vocal! Especialmente no final do segundo verso, onde a performance é de uma rapidez e rima estonteantes:

‘But come on, there has got to be someone That hasn’t yet become so numb And succumb and goddamn, I am so tired of Pretending of wishing I was ending When all I’m really doing is trying to hide’ Simplesmente espetacular!”.

The Mark Has Been Made

The Mark Has Been Made é um verdadeiro deleite auditivo.

Desvela-se com uma introdução profundamente sombria e, ao mesmo tempo, delicadamente tênue, ostentando uma batida com um penetrante efeito wah, sintetizadores de profundidade abissal, cordas etéreas e guitarra. Esta secção cessa de forma fulminante, para de imediato dar lugar a uma melodia solitária e expressiva de guitarra com wah. A ela se junta, sem demora, uma batida pujante, baixo e guitarra de impacto percussivo, e a triunfante reaparição da melodia de guitarra da secção inaugural! A isto se sucede uma escalada sonora, impulsionada por um riff de guitarra visceralmente distorcido e inédito, embebido numa intensidade avassaladora, até desaguar numa reprise da introdução, agora despojada de pulsação, num fecho magistral. A faixa termina com um vocal extremamente distorcido e agoniado de Reznor repetindo a frase ‘I’m getting closer’.”.

Please

Please inicia-se de imediato com o loop de bateria do verso, baixo sintetizado e guitarras invertidas, os quais se estendem por oito compassos antes de se reduzirem para o primeiro verso, acompanhando os vocais de Trent Reznor apenas com o loop de bateria e um riff de baixo. Outras camadas de sintetizador e guitarra agregam-se para conduzir ao pré-refrão, com Reznor a providenciar seu próprio acompanhamento vocal de fundo. O refrão é entoado em registo grave, quase falado, sobre uma nota de sintetizador em decaimento, conduzindo ao segundo verso e pré-refrão. O refrão final é estendido, apresentando um loop de cordas invertidas. A canção cessa tão abruptamente quanto principiou.

Starfuckers, Inc.

A gênese de Starfuckers, Inc. remonta a um loop de bateria criado por Charlie Clouser para utilização no projeto Tapeworm. Reznor declarou que esteve prestes a não incluí-la no álbum, devido à sua sonoridade dissonante em relação às demais faixas. O “Buddha Boys Choir”, creditado pelos cânticos de fundo nesta faixa, era composto por Keith Hillebrandt, Clint Mansell, Steve Duda, membros da banda Deadhandsystem de Nova Orleans e diversos funcionários dos Nothing Studios. A designação deste grupo improvisado nas notas do encarte provém do Igor’s Buddha Belly, um bar situado em frente aos estúdios. A palavra “Starfucker” foi, aparentemente, o título original da canção “Star Star” dos Rolling Stones, lançada no álbum Goats Head Soup de 1973. O termo ‘starfucker’ foi posteriormente utilizado pela artista Tori Amos na sua canção “Professional Widow”, do álbum Boys For Pele de 1996. Nesta canção, a epônima ‘viúva profissional’ e ‘starfucker’ é amplamente considerada como sendo Courtney Love. “Starfucker” é também a décima faixa do álbum de metal industrial Transmissions From Uranus (1997) da banda Hanzel Und Gretyl. Emergindo gradualmente com uma batida tênue e sintetizadores em movimento, o primeiro verso então irrompe, com loops de bateria sincopados e baixo sintetizado. Os vocais de Reznor no verso foram manualmente editados e emendados por Charlie Clouser, resultando numa sonoridade que sugere que cada palavra provém de uma tomada vocal distinta, possivelmente como uma crítica às celebridades da música pop que a letra parece satirizar. Em contraste, o refrão é vigoroso e predominantemente guitarrístico, com diversos brados grupais repetidos. Um solo de guitarra com efeito wah, similar em sonoridade àquele presente em “The Wretched”, conecta-se ao segundo verso. Após o segundo refrão, a canção rapidamente se abranda para a ponte, caracterizada por guitarra e vocal solitários, antes de irromper novamente no refrão de alta intensidade.

Complication

Complication inicia-se com um riff de guitarra descendente e filtrado que principia de imediato com o término de “Starfuckers, Inc.”, sendo incrementada por um loop de bateria antes de se expandir para o corpo principal da canção. Este se caracteriza por uma linha de baixo cativante, os vocais de fundo sem palavras de Trent Reznor e um solo de guitarra. A secção final da canção aparenta ser um loop de ruído gerado por guitarras, o qual também incorpora um som de vento em panorâmica que exibe notável semelhança com o som de vento que perpassa “Hurt” (do álbum The Downward Spiral).

I’m Looking Forward To Joining You, Finally

I’m Looking Forward To Joining You, Finally caracteriza-se por elementos musicais de índole marcadamente minimalista, principiando com um acorde inquietante executado por instrumentos de corda. Estes são prontamente sobrepujados pelo loop de bateria – o qual ostenta algumas sonoridades percussivas insólitas –, pela linha de baixo, bem como pelos vocais de Reznor. As cordas ressurgem ao longo dos versos e da ponte, secção esta comandada por um loop de percussão e uma linha de baixo distintos. Breves e tênues arabescos pianísticos manifestam-se intermitentemente.

The Big Come Down

The Big Come Down é uma composição de notável singularidade no vasto repertório de Nine Inch Nails. Esta faixa se distingue por um loop de bateria de considerável impacto e caráter bombástico, enriquecido por sonoridades percussivas insólitas. Acompanham-no um baixo sintetizado de presença marcante e um riff de guitarra com timbre acústico, cuja afinação peculiar é obtida através de uma guitarra Parker Fly, utilizando seu captador piezoelétrico – uma exploração timbrística digna de nota. Nos versos, a entrega vocal de Reznor é deliberadamente ríspida e intensa, estabelecendo um contraste dinâmico com a abordagem mais melódica dos pré-refrões e refrões, um padrão estrutural que encontraria eco posterior em ‘The Line Begins To Blur’ e ‘Head Down’ (ambas do álbum With Teeth). O refrão é harmonicamente sustentado por acordes de órgão, enquanto a ponte transita para uma paisagem sonora de sintetizadores ambientais e loops, antes de irromper novamente com uma nova e proeminente melodia sintetizada. A canção conclui-se de forma abrupta, estabelecendo uma transição imediata para ‘Underneath It All’. Trata-se, inegavelmente, de uma peça que demonstra particular engenhosidade na sua construção e execução.”.

Underneath It All

Underneath It All é uma faixa de singularidade notável no cânone de Nine Inch Nails; sua instrumentação distancia-se consideravelmente de outras composições no catálogo da banda, à semelhança da faixa precedente, “The Big Come Down”. A canção inicia-se de imediato com uma batida tênue e uma melodia de sintetizador de textura áspera. Estes elementos são prontamente incrementados por um loop rítmico entrecortado e ruidoso, sobre o qual Trent Reznor entoa letras e melodias correlatas às de sua faixa irmã, “The Great Below”. Guitarras distorcidas e sintetizadores fazem sua entrada em breve e se desenvolvem até um clímax, após o qual os versos finais são entoados a cappella, porém submetidos a distorção, equalização e um proeminente efeito de delay.

Ripe (With Decay)

Ripe (With Decay) transmuta-se a partir de uma improvisação pianística de notável beleza, concebida por Mike Garson, sobreposta a um riff de guitarra metódico e sinuoso em compasso de 6/8. Gradualmente, descende ao caos, com diversos instrumentos a executarem passagens de forma descontrolada e dissonante, antes que todas as sonoridades cessem em uníssono. O riff inaugural retorna, desta feita acompanhado por loops de sons insectoides e um pad de baixo profundo, entrecruzando-se em crossfade com a secção ‘Decay’. Este movimento desenvolve-se inicialmente sobre o riff de ‘Ripe’, com a adição de instrumentos de sopro, um sintetizador de timbre plangente e piano, para então desacelerar até uma cadência do pad de baixo, envolvida por sons de grilos. A segunda parte, ‘Decay’, principia em 4/4 com um novo riff de baixo, ao qual se agregam paulatinamente loops de bateria distantes, guitarras acústicas e elétricas de sonoridade invulgar, e os vocais harmonizados e sem palavras de Reznor, os quais se extinguem camada por camada, encerrando o álbum.

Conclusão

Em suma, The Fragile revela-se uma obra de envergadura monumental, um testemunho da prodigiosa capacidade criativa de Trent Reznor e da meticulosa produção de Alan Moulder. A sua estrutura intrincada e a audácia na exploração de paisagens sonoras díspares demonstram uma inovação que transcende as convenções do seu tempo. Cada faixa é um universo em si, contribuindo para um todo coeso, ainda que desafiador. A ousadia em entrelaçar momentos de delicadeza acústica com erupções de fúria industrial, a complexidade rítmica e a profundidade lírica conferem ao álbum uma densidade que recompensa múltiplas audições. Embora a sua vastidão e, por vezes, a sua natureza abrasiva possam constituir um obstáculo para alguns, é precisamente nessa ambição e recusa em seguir fórmulas fáceis que reside grande parte do seu mérito. Concedo, pois, a esta notável realização artística uma avaliação de 4 em 5 estrelas.

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